- ENTREVISTA
Entrevista ao jornal Diário de Notícias
Entrevista a Luis de Guindos, vice-presidente do BCE, realizada por Luís Reis Ribeiro
10 de novembro de 2025
A Reserva Federal dos Estados Unidos vive hoje sob tentativas de interferência política interna por parte do governo. Vê riscos de reputação para a Fed e, consequentemente, para a economia dos EUA, a maior do mundo?
Não vou comentar nenhum banco central específico, mas, em geral, penso que a independência dos bancos centrais é fundamental, porque é a melhor alternativa para manter a inflação controlada. Isto é positivo para consumidores, famílias e população em geral. E, simultaneamente, na perspetiva dos mercados, um banco central independente será a melhor opção para manter a inflação e as taxas de juro baixas.
É o caso do BCE?
Posso dar um exemplo muito simples. Em outubro de 2022, mesmo com a inflação na área do euro acima de 10%, as expectativas de inflação estavam ancoradas. Os participantes no mercado e as famílias acreditavam que o BCE poderia tomar as decisões corretas para reduzir a taxa de inflação. Isto é muito importante e acontece quando se tem um banco central independente. É certo que as instituições podem sempre cometer erros, mas, certamente, o principal objetivo de um banco central independente é manter a inflação sob controlo. Se um banco central for dependente do governo, talvez a política monetária fique ao serviço da política orçamental e isso é prejudicial para a confiança.
Sobre o caso que comecei por referir, muitos afirmam que a reputação de um banco central leva tempo a construir, mas um momento mau pode arruinar tudo. Para o BCE tem sido mais fácil?
No caso do BCE, temos um tratado que define muito claramente a independência do banco central. A melhor prova da confiança é o exemplo que referi, quando em 2022, mesmo com a taxa de inflação muito elevada, as expectativas dos consumidores estiveram sempre ancoradas em cerca de 2%. E, sim, isso facilita muito o nosso trabalho.
Atualmente, já há uns meses, a inflação da área do euro está estacionada dentro dos valores de referência do mandato do BCE. Quando hoje o BCE monitoriza as expectativas, o que observa? As pessoas também acreditam que a inflação se vai manter próximo de 2%?
Sim. Nos inquéritos que realizamos, vemos que a inflação, de acordo com as expectativas dos consumidores, será muito próxima da meta de estabilidade de preços, de uma inflação geral a rondar 2%. Para que isso aconteça, a evolução da inflação dos serviços é talvez o fator determinante. É justo dizer que a inflação dos serviços tem sido uma dor de cabeça para nós nos últimos anos, mas está a diminuir e a convergir para um nível compatível com a definição de estabilidade de preços. Paralelamente, a dinâmica salarial também está a caminhar no sentido certo.
O andamento dos salários estabilizou.
Totalmente. O crescimento mais lento dos salários é um indicador muito importante para nós.
A incerteza na política comercial global e regional é outro dos fatores que o BCE menciona regularmente quando comunica com as pessoas. Como é que o BCE se protege contra este grau de incerteza? Os vossos modelos de decisão já integram um mundo de incerteza mais permanente?
A incerteza diminuiu ultimamente. A União Europeia (UE) fechou um acordo comercial com os EUA e a incerteza quanto ao nível final das tarifas diminuiu. No entanto, as tarifas serão um pouco mais elevadas, subindo de 3% para cerca de 13%, para alguns produtos industriais exportados pela Europa. O impacto exato desta subida constitui igualmente uma fonte de incerteza.
Na relação EUA-China ainda nada está propriamente fechado.
Sim, existem outras fontes de incerteza, como o que vai acontecer com o acordo comercial entre a China e os EUA. Porque não se trata apenas do acordo bilateral, mas também do que pode acontecer em outras jurisdições. A China ganhou muita competitividade e começamos a ver que as suas exportações estão a penetrar no mercado europeu. Isso terá impacto tanto no crescimento, como na inflação.
Mais as guerras e as tensões geopolíticas.
O risco geopolítico é outro elemento a considerar. Temos a Ucrânia e a situação no Médio Oriente, que, por agora, está mais estável. Mas, no geral, os riscos geopolíticos são mais elevados do que há dois ou três anos. E isso traz riscos para a estabilidade financeira. A esses riscos, acrescento ainda as avaliações de ativos muito elevadas que vemos nos mercados, o potencial impacto da política orçamental dos países, o crescimento do setor das entidades não bancárias, nomeadamente de “hedge funds” e “private markets”. São elementos que temos de ter em conta. Mesmo que o nível de incerteza tenha diminuído face ao que tínhamos há seis meses, precisamos de adotar uma abordagem muito prudente e cautelosa em relação à nossa política monetária.
Fala de impactos da política orçamental. Nota novas ameaças de indisciplina orçamental dentro da área do euro? Isto complica o vosso mandato e exige ação ao BCE ou é um problema para os governos nacionais resolverem?
As nossas projeções e decisões de política monetária exigem uma avaliação abrangente da situação económica global e da política orçamental. A política orçamental é um dos principais desafios que enfrentamos agora. Mas não é só na Europa, é também nos EUA, onde o perfil orçamental é pior do que a média da área do euro. No conjunto da área do euro, temos um défice orçamental de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) e um rácio da dívida próximo de 90%. Mas existem enormes disparidades entre países. Há ainda um novo fator: os países da área do euro têm de aumentar a despesa com a defesa, porque temos um compromisso com a NATO. A despesa média com a defesa está perto de 2%, mas terá de aumentar para 3,5% e depois para 5%. É um grande esforço.
Podemos dizer que as taxas de juro soberanas estão relativamente controladas e que não ignoram esses riscos orçamentais no seio da área do euro?
Os mercados estão calmos. Mas a situação pode mudar, porque os países terão de garantir um aumento significativo das despesas em defesa e, paralelamente, passar a mensagem de que as políticas orçamentais serão sustentáveis.
O BCE está mais preocupado hoje com a dimensão orçamental da área do euro do que em 2019, antes da pandemia? Sei que não gosta de mencionar casos concretos, como o de França, mas atualmente é o mais saliente.
Devido à pandemia, tivemos uma deterioração significativa da situação orçamental de todos os países. Após a pandemia, começou a ser corrigida e está agora melhor. Mas há um fator fundamental: a necessidade de estabilidade política. Isso é muito importante e não está a acontecer. E não é só em França. Por exemplo, Espanha não aprova um Orçamento de Estado desde 2023. São elementos que deveriam ser corrigidos para garantir que, eventualmente, os diferentes governos serão capazes de alcançar a sustentabilidade orçamental ao longo do tempo.
Na UE, há governos nacionais hostis à ideia de uma união maior. Isto atrasa muito ou pouco o aprofundamento do projeto europeu? Refiro-me a aspetos como o mercado único, a união bancária, o fundo comum de garantia de depósitos, já para não falar da harmonização de impostos.
Temos populismo, tanto de direita como de esquerda, e isso torna as decisões mais difíceis e produz fragmentação. Perante problemas complexos, os partidos populistas, de direita ou de esquerda, tendem a propor soluções “mágicas” baseadas em receitas simples. Acreditam que a integração não é positiva. Penso que estão completamente enganados. Continuamos a ter discriminação e regulamentos nacionais que, na verdade, impedem a existência de um verdadeiro mercado único. O FMI fez algum trabalho sobre isto, concluindo que estes obstáculos são equivalentes a uma espécie de tarifa.
Mercados e observadores internacionais indicam que o BCE pode ter atingido um nível neutro ou ótimo para a inflação e que a taxa de juro relevante da política monetária fica em 2% até final de 2026, pelo menos. Quer comentar?
O nível atual das taxas de juro é o correto para lidar com a situação. Há três indicadores que analisamos com muita atenção: a evolução da inflação, as nossas projeções e a transmissão da política monetária. Se isso mudar, se a inflação evoluir de forma diferente, ou se as expectativas começarem a mudar e as previsões se modificarem, e se a transmissão não for a correta, então podemos mudar. Mas, até agora, acreditamos firmemente que o nível das taxas de juro é o correto.
A inflação está ancorada, mas, segundo as projeções do BCE, essa estabilidade não traz crescimento económico significativo, que estará ligeiramente acima de 1% até 2027. É um problema? Se o BCE fez a sua parte, quem é que não está a fazer a sua?
A nossa previsão é de que o crescimento se situará um pouco acima de 1%, o que é uma evolução positiva, porque evitámos uma recessão. No entanto, a taxa de crescimento real está abaixo do ritmo do crescimento potencial. Portanto, é muito baixa.
Qual é o nível de crescimento potencial da área do euro, agora?
Situa-se num intervalo entre 1% e 1,5%. Mas não pode ser observado, tem de ser estimado. É um conceito teórico, definido como a taxa de crescimento que podemos manter a longo prazo, com a economia a operar na sua plena capacidade e com uma utilização eficiente dos recursos que temos. Mas depende da evolução da imigração, da demografia e do emprego.
A criação de emprego e o fluxo de imigrantes têm sido cruciais, mas concorda que há um limite?
A taxa de desemprego atualmente é a mais baixa de sempre. A criação de emprego tem sido muito rápida e intensa, mas começamos agora a ver alguns sinais de abrandamento no emprego. Contudo, de um modo geral, a situação no mercado de trabalho é positiva.
O BCE fez uma conferência agora em novembro, em Bruxelas, e convidou Alfred Kammer, o diretor do FMI para a Europa. Alfred Kammer disse que o crescimento projetado para a Europa é “medíocre”. É?
A Europa está numa encruzilhada e, em relação ao crescimento que se projeta, o fator defesa é importante, porque tem de estar nas nossas mãos. Temos uma ameaça externa: a Rússia, que invadiu a Ucrânia. E, sim, a Europa terá de gastar mais em defesa e isso terá impacto na situação orçamental e económica. Há um outro elemento que considero importante: o mercado energético. A Europa tem de reduzir a sua dependência da Rússia e alargar as suas fontes de fornecimento de energia. Além disso, a Comissão Europeia lançou um plano muito ambicioso para simplificar os regulamentos que criam problemas para as empresas e dificultam os investimentos na Europa. Estes são os principais desafios que temos pela frente e as tentativas de lhes dar resposta.
Grécia, Portugal, Espanha fizeram, e ainda fazem, um esforço de consolidação orçamental e redução da dívida monumental desde a crise das dívidas soberanas (2010, 2011). Se faltar crescimento, combinado com a nova exigência que refere para aumentar muito a despesa, principalmente na defesa, que mensagem pode deixar a estes países?
A situação alterou-se drasticamente. Fui ministro responsável pela Economia em Espanha, de novembro de 2011 a 2018, e posso afirmar que agora a situação é precisamente a oposta. Portugal é um exemplo de como se pode reduzir o défice orçamental e depois reduzir drasticamente o rácio da dívida em relação ao PIB. Tudo isto foi recompensado pelos mercados com taxas de juro muito baixas. Atualmente, o “spread” entre a taxa soberana de Portugal e da Alemanha é inferior ao de outros países com notações de risco semelhantes, o que é muito positivo.
Em Portugal, o peso da dívida caiu muito, mas situar-se-á em torno de 80% nos próximos anos, bem acima do limite de 60% estabelecido no Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Sim, mas está a descer bastante: é notável. A previsão é de que Portugal terá um défice público de zero, ou próximo de zero, nos próximos anos – uma tendência que reduzirá o rácio da dívida. Portugal fez um grande esforço, assim como a Grécia, Chipre e a Irlanda. Na minha opinião, o obstáculo orçamental deixou de ser um problema.
Referiu o dinamismo do emprego e da imigração, o seu contributo para a economia. As novas políticas que regulam ou travam a mão-de-obra imigrante podem ser um obstáculo ao crescimento?
Temos de pensar que existem pressões sobre o crescimento na Europa, como o envelhecimento da população. O debate sobre a imigração é um tema aceso, mas a imigração é uma condição necessária para o crescimento, ainda que tenha de ser ordenada. Se olharmos para Espanha, por exemplo, a principal razão pela qual está a ter um desempenho muito superior à taxa de crescimento média da área do euro é porque os fluxos migratórios fazem com que a população espanhola esteja a crescer muito rapidamente. Além disso, cria efeitos indiretos positivos e não apenas em Espanha.
António Costa, presidente do Conselho Europeu, afirma que existe uma crise de habitação na Europa. Qual é o diagnóstico do BCE sobre isto?
Penso que ele tem razão. A habitação é um dos principais problemas que temos na Europa, especialmente a habitação para os jovens. O custo do financiamento para construção, mesmo para a compra de casa, é relativamente limitado, mas os indicadores de construção não são bons. Há um aumento da procura, mas a oferta habitacional não está a reagir tão rapidamente. Há estrangulamentos no setor da construção civil, pelo que a solução a curto prazo, até que a construção comece a ganhar força, é o mercado de arrendamento. Também pode dar-se o caso de a regulação do mercado de arrendamento não ser a melhor para aumentar a oferta.
Faria sentido os bancos venderem crédito mais barato a quem compra um imóvel para colocar no mercado de arrendamento?
A melhor solução a curto prazo é introduzir legislação que promova a oferta no mercado de arrendamento.
Sobre o caso do Novo Banco em Portugal, houve um acordo para que o banco fosse comprado pelo grupo francês BPCE. Que avaliação faz?
Como sabe, no BCE, não comentamos casos e pormenores concretos, especialmente quando decorre uma investigação judicial. No geral, penso que há uma clara melhoria em termos de solvabilidade do setor bancário em Portugal, tal como no resto dos bancos da área do euro. A situação dos bancos portugueses, em termos de solvabilidade e liquidez, é bastante boa.
Sobre o caso das instituições não bancárias, do mercado dos criptoativos, o FMI observou que, a nível global, existem problemas e riscos. E na Europa?
Na Europa, as atividades das instituições não bancárias, os fundos de investimento, os “hedge funds” e os produtos financeiros que oferecem estão a ganhar quota de mercado, embora esta evolução seja mais relevante nos EUA. Os bancos europeus têm uma supervisão muito apertada e temos uma estrutura macroprudencial. Contudo, no caso das instituições não bancárias – exceto seguradoras e fundos de pensões, que são regulados –, não existe uma regulamentação tão rigorosa. Recomendamos um quadro macroprudencial para as instituições não bancárias.
Se os legisladores europeus aprovarem o regulamento do euro digital em 2026, o BCE poderá começar a emitir estes euros desmaterializados em 2029. É uma resposta à ascensão das criptomoedas, como se diz?
Não, é a evolução digital das notas. O euro digital decorre da evolução do dinheiro físico para dinheiro em forma digital, acompanha a tecnologia que todos temos ao nosso dispor. Será um meio de pagamento que não vai pagar juros, não vai competir com depósitos bancários, não será um ativo de investimento de forma alguma. Será um meio de pagamento para facilitar as transações das famílias europeias num mundo cada vez mais digital.
O senhor está no último ano do seu mandato. Que momentos pode eleger como mais positivos e difíceis enquanto vice-presidente do BCE?
Os mais difíceis foram, sem dúvida, os tempos da pandemia e, posteriormente, o aumento da inflação, desencadeado pela crise energética após a invasão da Ucrânia, quando a inflação ultrapassou 10%. Boas experiências… em primeiro lugar, sendo eu responsável pela estabilidade financeira, posso afirmar que não tivemos turbulência significativa nem uma crise financeira. Houve pontos de vulnerabilidade concretos, mas não crises como a que se verificou nos bancos regionais nos EUA ou a situação que afetou o Credit Suisse na Suíça. Penso que é prova e consequência da nossa supervisão, do nosso regime prudencial, bem como do acompanhamento e das análises que efetuamos.
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