- DISCURSO
O ciclo invulgar da política monetária: os riscos, a trajetória e os custos
Discurso introdutório de Christine Lagarde, presidente do BCE, na abertura do Fórum do BCE sobre Banca Central em Sintra, Portugal
Sintra, 1 de junho de 2024
Antes de mais, gostaria de lhes dar as boas‑vindas ao Fórum do BCE.
O fórum deste ano é dedicado ao tema “A política monetária numa era de transformação” e aguarda‑nos um programa recheado, que explora as alterações em curso.
Embora a maioria de nós concorde que a economia está em processo de mudança substancial, imagino que as perspetivas sobre quais serão os resultados são muito mais divergentes.
Esta falta de clareza constitui um importante desafio para decisores de políticas, pois temos de tentar compreender as transformações e, ao mesmo tempo, orientar a economia quando estão a decorrer.
Com efeito, nos últimos anos, grande parte do desafio em termos de política monetária envolveu estabilizar a inflação, num contexto de incerteza fundamental da economia.
No entanto, conseguimos navegar essa incerteza e avançámos bastante na luta contra a inflação.
Em outubro de 2022, a inflação atingiu um máximo de 10,6%. Em setembro de 2023, a última vez que aumentámos as taxas de juro diretoras, a inflação tinha descido mais de metade, passando para 5,2%. Posteriormente, após termos mantido as taxas constantes durante nove meses, observamos uma nova descida da inflação para metade, ou seja, 2,6%, o que nos levou a proceder a um primeiro corte das taxas em junho.
O nosso trabalho ainda não está feito e temos de permanecer vigilantes. Contudo, este avanço permite‑nos olhar para trás e refletir sobre a trajetória seguida.
Gostaria de abordar aqui hoje três elementos específicos, que definiram o presente ciclo de política monetária: os riscos, a trajetória e os custos[1].
Os riscos
Começarei pelos riscos.
Num ciclo de política monetária normal, em que as flutuações são impulsionadas por choques moderados e de curta duração, as expectativas de inflação não estão habitualmente em risco. O mandato de estabilidade de preços e as funções de reação dos bancos centrais asseguram a confiança no objetivo de inflação.
Quando confrontados com choques da procura normais, os bancos centrais alcançam o seu objetivo estabilizando a procura em torno do produto potencial. Quando confrontados com choques da oferta, os bancos centrais podem, em princípio, “olhar para além” desses choques, porque, em regra, não deixam marcas duradouras na inflação.
Não obstante, este risco baixo para as expectativas de inflação só se aplica quando os choques são realmente moderados e de curta duração. Em situações em que existe o risco de os choques serem maiores e mais persistentes, pode verificar‑se uma desancoragem das expectativas de inflação, independentemente de os choques decorrerem da procura ou da oferta.
Os bancos centrais têm, então, de reagir com determinação para evitar o enraizamento de uma inflação acima do objetivo.
Foi esta a lição retirada da década de 1970, quando uma sequência de choques da oferta, causados pela subida dos preços do petróleo, acabou por se transformar num choque inflacionista duradouro. Como se considerava que os bancos centrais eram, na altura, ambivalentes no tocante a reduzir a inflação, as pessoas reviram as suas expectativas de inflação a médio prazo.
Diferentes estudos chegam a conclusões distintas sobre a origem do atual episódio de inflação. A análise do BCE conclui que, no auge, os choques da oferta eram três vezes mais importantes do que os choques da procura na explicação do desvio da inflação em relação à média[2]. Outros estudos dão maior ênfase aos choques da procura[3].
Todavia, esta delimitação entre a oferta e a procura, apesar de relevante, não foi o fator mais importante no presente ciclo.
Precisávamos de basear as nossas decisões não apenas na origem dos choques, mas também na sua dimensão e persistência. Isto porque os choques eram tão grandes e persistentes, que enfrentávamos verdadeiramente um risco para as expectativas de inflação.
Dois elementos podiam proporcionar terreno fértil para as pessoas perderem a confiança na âncora monetária.
Primeiro, os choques eram suficientemente grandes para levar muitas famílias a desviar a atenção para a inflação. No início de 2023, mais de 60% das pessoas inquiridas no nosso inquérito sobre as expectativas dos consumidores indicaram que estavam a prestar mais atenção à inflação do que no passado[4].
Segundo, havia o risco de o impacto inflacionista dos choques se tornar endogenamente persistente, devido sobretudo ao processo faseado das negociações salariais na área do euro. Apesar de existir uma grande variação entre os países, a duração média dos acordos salariais é de dois anos, garantindo efetivamente um processo prolongado de “recuperação” face à inflação passada[5].
Observámos efetivamente alguns sinais de que a ancoragem das expectativas de inflação estava a ficar mais vulnerável, em especial através do alargamento da “cauda direita” da distribuição. Em outubro de 2022, cerca de quatro em cada dez consumidores consideravam que a inflação a médio prazo seria igual ou superior a 5% e analistas profissionais atribuíam uma probabilidade de 30% de a inflação ser igual ou superior a 3% dois anos depois[6].
Por conseguinte, a política monetária tinha de sinalizar com firmeza que excessos face ao objetivo de inflação não seriam tolerados. Consequentemente, reiterámos com firmeza a nossa determinação em assegurar um retorno “atempado” da inflação ao nosso objetivo. A nossa finalidade era transmitir o nosso compromisso em garantir que o período de inflação elevada seria limitado e sinalizar a urgência.
A trajetória
Mas, como é que a política monetária ancora as expectativas de inflação? Não se trata apenas do destino da política monetária, também tem a ver com definir a trajetória certa das taxas para lá chegar.
Isto traz‑me ao segundo elemento específico do presente ciclo: a trajetória das taxas.
Era claro, desde o início, que a mera comunicação do nosso compromisso de atingir o nosso objetivo não seria suficiente. A análise do BCE confirma que, se não tivéssemos reagido, o risco de desancoragem teria sido superior a 30% em 2023 e 2024[7].
É provável que até medidas de política monetária moderadas teriam sido insuficientes. Por exemplo, se as taxas tivessem parado em 2%, o risco de desancoragem ainda teria sido de cerca de 24%.
Assim, quando iniciámos os aumentos das taxas, sabíamos que estávamos longe de onde precisávamos de estar. O fator mais importante foi, portanto, eliminar a distância com a maior rapidez possível. Por este motivo, a nossa trajetória das taxas começou com uma subida historicamente acentuada, com incrementos de 75 e 50 pontos base nos primeiros seis aumentos das taxas.
No entanto, com a passagem das taxas diretoras para território restritivo, o desafio deixou de ser atuar com rapidez e passou a ser calibrar a trajetória com precisão. Mais especificamente, precisávamos de definir uma trajetória para as taxas que assegurasse um retorno “atempado” da inflação a 2% e o fizesse com um elevado grau de confiança.
Essa trajetória também exigia que adotássemos uma abordagem diferente da do passado.
Confrontados com múltiplos choques de grande dimensão, deparámo‑nos com uma incerteza significativa relativamente à forma de interpretar e classificar a informação que recebíamos da economia.
Por um lado, teria sido arriscado confiar demasiado em modelos assentes em dados históricos, pois esses dados poderão já não ser válidos. Não podíamos saber, por exemplo, se as mudanças de preferência, os preços mais elevados dos produtos energéticos e a geopolítica tinham alterado a estrutura da economia.
Por outro lado, confiar demasiado nos dados atuais poderia igualmente induzir em erro, caso estes revelassem ter um reduzido poder de previsão a médio prazo. Com a transmissão dos choques ao conjunto da economia, também era possível que os dados atuais refletissem mais os desfasamentos na transmissão do que as tendências efetivas da inflação.
Portanto, definimos um quadro para cobertura face a esta incerteza, combinando projeções com dados atuais sobre a inflação subjacente e a transmissão monetária. A finalidade era combinar vários elementos de informação sobre as perspetivas a médio prazo numa única avaliação, passível de ser atualizada rapidamente.
As nossas previsões ofereciam uma avaliação abrangente da inflação futura, partindo do pressuposto de que os parâmetros subjacentes da economia permaneceriam estáveis. Ao mesmo tempo, a análise dos dados atuais permitia‑nos identificar componentes persistentes da inflação e ter em conta alterações estruturais eventualmente não contempladas nos nossos modelos de previsão[8].
Nesta função de reação, a nossa avaliação das perspetivas de inflação baseia‑se nas nossas projeções, mas não se limita às mesmas. Utilizamos várias medidas para determinar a inflação subjacente. Além disso, na avaliação da força da política monetária, consideramos os bancos, os mercados de capitais e a economia real.
Em resultado, embora o fluxo de nova informação contribua constantemente para, e melhore, a nossa perspetiva da inflação a médio prazo, não nos deixamos influenciar por qualquer ponto de dados específico. Dependência de dados não significa dependência de pontos de dados.
Este quadro ajudou‑nos a navegar as fases de “aumento da restritividade” e de “espera” do nosso ciclo de política monetária e deu‑nos a confiança necessária para realizar um primeiro corte das taxas na mais recente reunião de política monetária.
Durante estas fases, vimos a “cauda direita” da distribuição das expectativas de inflação diminuir, o que é consentâneo com um retorno atempado da inflação ao objetivo.
Os custos
Todavia, ainda que a trajetória da nossa política monetária tenha ajudado a controlar a inflação, também travou o crescimento económico. As taxas de juro aumentaram de forma constante e permaneceram elevadas, enquanto a economia estagnou durante cinco trimestres consecutivos.
Este padrão é inevitável quando os bancos centrais enfrentam choques que empurram a inflação e o produto em direções opostas. Porém, desta vez, os custos de desinflação foram contidos em comparação com episódios semelhantes no passado.
Isto traz‑me ao terceiro elemento específico do presente ciclo.
Dada a magnitude do choque inflacionista, ainda não está garantida uma “aterragem suave”. Analisando os ciclos de taxas desde a década de 1970, constatamos que, quando os principais bancos centrais subiram as taxas de juro em momentos em que os preços dos produtos energéticos eram elevados, os custos para a economia foram, em geral, bastante altos[9].
Apenas cerca de 15% das “aterragens suaves” bem‑sucedidas nesse período – definidas como consistindo em evitar uma recessão ou uma grande deterioração do emprego – foram asseguradas na sequência de choques de preços dos produtos energéticos.
Mas, até à data, o presente ciclo não seguiu padrões históricos.
A inflação atingiu um máximo muito mais alto do que em anteriores “aterragens suaves”, mas também desacelerou mais rapidamente. O crescimento permaneceu dentro do intervalo de anteriores episódios de “aterragem suave”, se bem que próximo do limiar inferior do intervalo. O desempenho do mercado de trabalho tem sido excecionalmente benigno.
O emprego aumentou, não obstante o abrandamento do crescimento do produto interno bruto (PIB), com mais 2,6 milhões de pessoas empregadas desde o final de 2022. O desemprego situa‑se em mínimos históricos na área do euro e perfeitamente dentro do intervalo observado durante anteriores “aterragens suaves” nas principais economias.
A resiliência do mercado de trabalho é, em si, um reflexo da combinação invulgar de choques que atingiram a área do euro, com a escassez de mão de obra a levar as empresas a acumular mais mão de obra e os lucros mais elevados e os salários reais mais baixos a facilitar essa acumulação[10].
Em resultado, a propagação habitual de um crescimento mais lento a riscos acrescidos de desemprego e a uma procura mais reduzida não se verificou na mesma escala.
Presentemente, ainda enfrentamos várias incertezas quanto à inflação futura, em particular em termos de como evoluirá o nexo entre os lucros, os salários e a produtividade e no que toca à possibilidade de a economia ser afetada por novos choques do lado da oferta. Levará algum tempo até dispormos de dados suficientes para termos a certeza de que os riscos de uma inflação superior ao objetivo se dissiparam.
A solidez do mercado de trabalho significa que temos tempo para recolher nova informação. Contudo, também precisamos de ter em conta que as perspetivas de crescimento continuam a ser incertas. Tudo isto apoia a nossa determinação em seguir uma abordagem dependente dos dados e reunião a reunião na tomada de decisões de política monetária.
Conclusão
Permitam‑me que conclua.
As nossas decisões de política monetária conseguiram manter as expectativas de inflação ancoradas, projetando‑se que a inflação regresse a 2% na parte final do próximo ano. Considerando a dimensão do choque inflacionista, esta reversão é excecional em muitos aspetos.
Apesar de milhões de empresas e trabalhadores terem, independentemente, procurado proteger os seus lucros e rendimentos, o objetivo de inflação de 2% permaneceu credível e continuou a ancorar o processo de inflação.
Tal demostra o valor dos quadros de política monetária desenvolvidos pelos bancos centrais nos últimos 30 anos, centrados na estabilidade de preços e na independência dos bancos centrais. É por esta razão que não vacilaremos no nosso compromisso de assegurar o retorno da inflação ao nosso objetivo, em benefício de todos os cidadãos europeus.
Como disse o grande futebolista e treinador Bobby Robson, “os primeiros 90 minutos são os mais importantes”. Não descansaremos até termos ganho o jogo e a inflação tiver regressado a 2%.
Para uma discussão complementar sobre a evolução dos ciclos de política monetária no último meio século em muitas economias avançadas e sobre a forma como o ciclo atual nesses países difere do passado, ver Forbes, K., Ha, J. e Kose, M.A. (2024), “Rate cycles”, documento apresentado no Fórum do BCE sobre Banca Central em Sintra.
Bańbura, M. et al. (2023), “What drives core inflation?The role of supply shocks”, Série de Documentos de Trabalho do BCE, n.º 2875.
Giannone, D. e Primiceri, G. (2024), “The drivers of post‑pandemic inflation”, estudo apresentado no Fórum do BCE sobre Banca Central em Sintra.
D’Acunto, F., Charalambakis, E., Georgarakos, D., Kenny, G., Meyer, J. e Weber, M. (2024), “Household inflation expectations: an overview of recent insights for monetary policy”, Série de Documentos de Discussão do BCE, n.º 24
Górnicka, L. e Koester, G. (eds) (2024), “A forward‑looking tracker of negotiated wages in the euro area”, Série de Documentos Ocasionais do BCE, n.º 338.
BCE (2022), “Inflation perceptions and expectations”, 7 de dezembro; e BCE (2022), “The ECB Survey of Professional Forecasters – Fourth quarter of 2022”, outubro.
Christoffel, K. e Farkas, M. (2024), “Monetary policy and the risks of de‑anchoring of inflation expectations”, Série de Documentos de Trabalho do Fundo Monetário Internacional, a publicar.
Lagarde C., (2024), “Policymaking in a new risk environment”, discurso proferido na 30.ª Conferência Económica de Dubrovnik, 14 de junho.
De acordo com uma análise do BCE baseada numa amostra de 48 ciclos de política monetária de nove bancos centrais com um objetivo de inflação, abrangendo o período de 1970 a 2022. Ver o artigo, a publicar em breve, do Blogue do BCE, intitulado “Navigating inflation: a historical perspetive of monetary policy cycles”.
Arce, O. e Sondermann, D. (2024), “Low for long? Reasons for the recent decline in productivity”, Blogue do BCE, 6 de maio.
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